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Textos
Um jogo de brutos, mas jogado por cavalheiros
O universo de um esporte que cresce rapidamente em Salvador: o rugby
Rodrigo Aguiar
“Uh, vai morrê-ê! Uh, vai morrê-ê! Uh, vai morrê-ê...”. Eles formavam duas filas paralelas, uns ao lado dos outros, deixando um espaço no meio. A lembrança do velho corredor polonês da minha sétima série veio à mente. Braços levantados formavam uma espécie de teto, cobrindo o espaço pelo qual eu teria que passar. Simples. Assim como numa quadrilha de São João (todo mundo já dançou uma, pelo menos na terceira série), eu teria que me agachar e atravessar o corredor do início ao fim. As únicas diferenças eram: a minha parceira não era uma garotinha de bochechas pintadas e vestido e sim uma bola oval debaixo do braço direito, a trilha sonora não era nenhuma singela canção junina e sim cerca de 25 marmanjos entoando o mantra que inicia esse texto e, pra finalizar, o “teto” iria desabar nas minhas costas quando, agachado, eu passasse entre as duas filas. Não, esse não era um teste para entrar para o Bope. Essa era a cerimônia de batismo de um novato no Bahia Rugby Club.
Além de mim, havia um outro “aspira” que passaria por tudo aquilo. E ele foi o primeiro. Enquanto corria o mais rápido possível agachado pelo corredor, os braços desciam, desferindo tapas em suas costas. “Agora volta!”, alguém gritou. Sim, era ida e volta. No retorno, o rapaz chegou a tropeçar e cair no chão quando já conseguia sair do corredor da morte. Agora era a minha vez. Alguns gaiatos erguiam as chuteiras, mostrando-as para mim, enquanto sorriam. “Se eu cair no meio do corredor, será que eles vão começar a me chutar ou vão se jogar todos encima de mim?”. O coro aumentou, provavelmente por causa da minha demora. “UH, VAI MORRÊ-Ê! UH, VAI MORRÊ-Ê!” Eu estava lhes privando o prazer de bater em algo e eles, de vingança, gritavam mais alto. O Portuga, um dos caras que comandou o treino, me puxou de lado e disse: “Vais com as costas retas”. Como? Ele repetiu, talvez acreditando que o meu “como” se referia a um não entendimento da frase devido ao sotaque lusitano. Eu já havia entendido de primeira. Apenas queria saber como iria cumprir as suas instruções. Ele queria que eu fizesse um ângulo reto com o meu corpo, abaixado e com as costas retas ao mesmo tempo? Provavelmente era isso. Quando se é novato em algo e todos os outros já se conhecem, você começa a desconfiar que as pessoas querem te sacanear. Minha dúvida era se aquela manobra sugerida por Portuga era uma maneira de minimizar a dor ou se era um mecanismo para atrasar mais a corrida ou aumentar a área disponível para o ataque das mãos, fazendo do meu calvário uma experiência pior. Enquanto Portuga falava comigo a um canto, Martin, argentino e técnico da equipe, palestrava aos pupilos. Provavelmente advertia os garotos para não pegarem pesado com o novato, podiam desmontar o coitado de tão magrinho que era. Ou não. “UH, VAI MORRÊ-Ê! UH, VAI MORRÊ-Ê!” Eu já sabia: tinha que ir e pronto. O problema era convencer as minhas pernas a obedecerem às ordens enviadas através das sinapses. Decidi ir de qualquer jeito. Só não fechei os olhos pra não cair no caminho.
♦ ♦ ♦
- Alô, Handoff?
- Diga.
- Aqui é Rodrigo, o amigo de Mariele que quer fazer a reportagem sobre rugby.
- Ah, sim. Diga aí, velho.
- É o seguinte, vocês vão treinar hoje lá na Paralela, né?
- É.
- É porque eu tô pensando em ir assistir o treino e tal. Qual é o melhor lugar pra eu descer?
- Rapaz, a melhor coisa que você pode fazer é descer ali no ponto do Extra. Daí você vai logo ver a gente no gramado em frente. Vai treinar também, né?
(Pausa)
- Rapaz, não sei. Eu nem sei as regras direito, vai ser jogo treino?
- Bora, pô. Leve água, chuteira ou então tênis e aí você treina com a gente. É bom porque aí você sente na pele, hehe. Relaxe, é tranqüilo.
“Sentir na pele” seria um exercício interessante de observação participante, técnica utilizada por adeptos do new journalism. Esses senhores acreditavam (e acreditam) que a melhor maneira de descrever uma situação é participar dela antes de escrever sobre. Nas aulas de Comunicação Jornalística, ouvimos grandes elogios feitos pelo professor a Tom Wolfe, Gay Talese e tantos outros pertencentes ao jornalismo literário praticantes da tal observação participante. Participar de um treino de rugby antes de escrever sobre o esporte poderia ser uma experiência interessante, pensei. Havia um certo desafio nisso tudo. E uma certa vontade de aparecer, é verdade. Quem sabe eu não ganharia uns minutinhos de fama na sala por ter “sentido na pele” o objeto do meu trabalho?
- Beleza, Handoff. Até mais, então.
- Tchau.
♦ ♦ ♦
O rugby (pronuncia-se râguibi) é um esporte criado na Inglaterra. Reza a lenda que um jogador de futebol de um colégio da cidade de Rugby, na Inglaterra, chamado William Webb Ellis, teria, em 1823, numa jogada irregular, pegado a bola com as mãos e saído correndo com ela até a linha de fundo adversária. Outras versões acerca da origem do esporte afirmam que a bola já era carregada nos braços em alguns tipos de jogos praticados na época (entre 1820 e 1830). Independente de qual seja a verdadeira origem do esporte, o rugby é uma espécie de “primo distante” do futebol atual, tendo as duas modalidades surgido de uma mesma maneira de se praticar um jogo com bola. O rugby é o segundo esporte coletivo mais popular do mundo, ficando atrás do futebol. É bastante jogado no Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul (essas são as grandes potências do esporte). Também tem boa tradição em países como Itália, França e Argentina. A atual seleção campeã do mundo é a África do Sul, que, com a vitória na Copa do Mundo de Rugby de 2007 (realizada na França), igualou-se à Austrália no quesito número de títulos, ambas possuindo dois no momento. Contudo, apesar da grande popularidade a nível mundial, o rugby possui pouca tradição no Brasil. Charles Miller, o mesmo que trouxe o futebol para o Brasil, teria, segundo o historiador Paulo Várzea, organizado, em 1895, o primeiro time brasileiro de rugby, em São Paulo. Rugby e futebol chegaram ao Brasil à mesma época, mas apenas o segundo tornou-se conhecido da população de maneira geral, além de assumir a condição de paixão nacional.
Saber da existência de times de rugby na Bahia, e particularmente em Salvador, me deixou particularmente feliz. Não sou fã do esporte, não conhecia nenhuma regra e meu único contato com o rugby havia sido durante uma passada de canal na TV, quando me deparei com uma transmissão pela ESPN de uma partida. Fiquei feliz apenas por ver uma manifestação cultural ao qual estamos pouco acostumados sendo difundida e praticada entre soteropolitanos. Desde fevereiro de 2006, há gente praticando rugby em Salvador. Já são catorze estados brasileiros possuidores de equipes de rugby. São eles: Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
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O trânsito caótico na região do Iguatemi me fez sair de casa com mais de uma hora de antecedência. Eu queria chegar cedo ao local do treino. Como me foi recomendado por Handoff, desci no ponto do supermercado Extra da Avenida Paralela e olhei para o gramado em frente. Não havia nenhum indício de pessoas jogando. Natural, já que ainda não eram nem 20 horas, horário marcado para o time se encontrar no estacionamento do monumento em homenagem a Luís Eduardo Magalhães. Na passarela que cruza a movimentada avenida, um grupo praticava rappel. Não pude deixar de sorrir, pensando que aquela noite estava sendo realmente surreal. Enquanto eu esperava para treinar com um time de rugby, observava pessoas descendo do alto de uma passarela, amarradas por cordas, até o chão. O tempo passava e nada de aparecer alguém no tal gramado. Subi até a passarela, exatamente até o ponto de onde os praticantes de rappel iniciavam a descida, para ter uma visão mais ampla do gramado. Nada. Desci e fui até um orelhão mais próximo. Liguei para o celular de Handoff. Caixa de mensagem. Perguntei as horas a alguém, já eram 20h15. Alguém deveria ter aparecido. Comecei a suspeitar que o treino havia sido cancelado de última hora por algum motivo extraordinário. Provavelmente alguém deve ter colocado um aviso na comunidade do Orkut, pensei. Quando já começava a desanimar, percebi um grupo de pessoas ao longe. Pequenos pontos correndo. Só podiam ser eles.
De onde eu estava, seria difícil atravessar a pista. Subi a passarela correndo e fui para o outro lado da Paralela. A pista desse outro lado era mais fácil de ser atravessada. Finalmente cheguei ao gramado central e dei mais um pique pra chegar logo até o local do treino. Um grupo de homens já fazia um aquecimento, correndo em círculos. Avistei duas pessoas sentadas e me dirigi até elas.
-Algum de vocês é Handoff?
- Sou eu – disse o mais novo.
Handoff estava vestido como se fosse jogar uma pelada. Camisa do Colégio Salesiano, de listras verticais vermelhas e brancas, calção azul, meiões vermelhos e chuteiras pretas. Como um jogador da seleção de futebol paraguaia. Com um físico podendo ser descrito como um “gordinho robusto, forte”, Handoff tem uma estatura mediana e barba pouco espessa. Estendeu a mão para me cumprimentar e mostrou-se amigável no primeiro contato.
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André Luiz Handoff, o homem conhecido pelo sobrenome. Quando a sonoridade do nome “Handoff” penetrou os meus ouvidos pela primeira vez, imaginei uma garrafa de vodka. Estudante de Direito da Faculdade Ruy Barbosa, tem 20 anos e já joga desde os primórdios do rugby na Bahia, na época em que só os gringos sabiam jogar. “Hoje em dia, pra galera que chega agora, é mais fácil aprender, porque não tem só os gringos que sabem jogar. A gente já sabe jogar, tem um time”, analisa Handoff. Ele se recorda do quão convidativo foi o seu primeiro treino. Ele aconteceu às 6 da manhã, na praia do Jardim dos Namorados (com um fedor terrível de esgoto) e num domingo. Na época, cerca de dez guerreiros se interessavam por esse tipo de experiência. “Chegando lá, a gente começou a correr. Só que o cheiro do esgoto era muito forte, a galera começou a vomitar, passar mal. O cheiro era realmente muito forte, e a gente não tava acostumado com aquele treinamento físico”. Olhando pra aquele número considerável de pessoas treinando num gramado na Paralela, ele se recorda dos tempos difíceis, bem no começo mesmo. “Teve uma época que quase acabou o rugby na Bahia. Eu já participei de treino com quatro pessoas”, ele lembra. Handoff teve uma trajetória bastante interessante dentro do rugby. Atualmente membro dos Orixás (a seleção baiana de rugby), ele passou por muitas dificuldades antes de se tornar um bom jogador. “Eu era uma merda. Era sempre o último a correr, ficava sempre pra trás. Eu não sabia tacklear (derrubar um jogador), não sabia nada.” O início da melhora se deu quando Stephane (Stephane Ettore, francês e um dos que iniciaram a prática em Salvador) e Zé (José Alpuim, português que comandava os treinos) tiveram uma conversa sincera com ele, dizendo terem percebido a sua dificuldade de jogar. E eles pediram uma atitude da parte do jogador. Nesse momento, só existiam duas possibilidades: parar de treinar ou se superar a cada treino. Segundo caminho escolhido, Handoff passou a se dedicar bastante. “Mas é aquela coisa: você tem que ter força de vontade. E tem que gostar. Se não gostar, nem apareça no terceiro treino. Se não gostar, é melhor desistir pra acabar não fazendo besteira, não se irritar. Por exemplo, às vezes, as pessoas que chegam agora, quando caem no chão pela primeira vez, recebem uma mãozada na cara, um tapa, um chute assim meio sem querer, acham ruim, mas o jogo é assim”. Não consigo controlar a risada ao imaginar o chute “meio assim sem querer”. De fato, quem joga rugby sabe da natureza do esporte e não esconde isso. “Dentro de campo, o cara do outro time é seu inimigo e você tem que botar pra fuder encima dele. Agora, isso é só no jogo. Fora de campo, todo mundo é uma família, muito respeito por todos os lados. Se o cara te der um tapa no jogo, você revida no jogo. Se você não revidar, com certeza ele vai te pedir desculpas depois. Quando tem confusão fora do jogo, deixa de ser rugby”. E, embora possa parecer estranho à primeira vista, a natureza do esporte favorece muito a solidariedade. “Pelo esporte ter muito contato, você acaba sempre defendendo o seu time, o cara do seu lado, com todas as forças. E isso é recíproco”, diz Handoff.
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O rugby é jogado em campos com dimensões parecidas às de um campo de futebol. A área de jogo é constituída pelo próprio campo e por zonas retangulares chamadas de in-goals, localizadas atrás dos postes em formato de H, chamados de up-rights. As partidas são disputadas em dois tempos de 40 minutos, sem interrupção do relógio. Este pára apenas para o eventual atendimento de algum jogador. Os times têm, cada um, quinze jogadores. Estes possuem características físicas, funções e posições bastante diferenciadas. Os jogadores são classificados pelo seu tipo físico predominante e dividem-se em: forwards (são os jogadores mais pesados e fortes) e backs (estes mais leves e velozes). Existe uma variação do rugby denominada Rugby Sevens. Nesta modalidade, as partidas são disputadas em dois tempos de sete minutos tendo, cada time, sete jogadores. Essa variação do rugby propicia um jogo mais veloz. O time vencedor é aquele que marcar o maior número de pontos.
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Enquanto eu corria em círculos com Handoff para um breve aquecimento, ele me contava sobre seu início no esporte. “Começou quando aquele número 3 ali (e me apontou um jogador com o número 3 estampado nas costas correndo uns dois metros à nossa frente) me chamou pra vir participar de um treino. A gente já jogava handebol no colégio e aí ele me falou do rugby. No início, eu nem queria ir, achava o jogo violento demais, mas, depois do primeiro treino, eu não parei mais”. Aproveito também para fazer algumas perguntas sobre o jogo, as regras, coisas menores. Logo chega ao fim a nossa corrida e é hora de treinar alguns fundamentos. São escolhidos dois jogadores para fazerem a marcação. O resto é dividido em três fileiras. Enquanto um jogador de cada fileira avança, formando, portanto, uma linha reta de três jogadores espaçados lado a lado, os dois marcadores devem impedir que aquele que estiver com a bola em mãos consiga passar. O jogador da esquerda deve sair com a bola em mãos, levando-a o mais próximo possível do primeiro marcador. Quando estiver bastante próximo, passa a bola para o jogador do meio. Este, por sua vez, tendo já próximo de si o segundo marcador, passa a bola para o homem da direita que, livre, recebe a bola e avança livre. Não é tão simples quanto parece. Para quem avança, é preciso correr no mesmo ritmo, pois a bola, no jogo de rugby, só pode ser passada para o lado ou para trás. Passar a bola para a frente com as mãos constitui-se infração (a única maneira aceitável de passar a bola para a frente é através de pontapés). Além disso, é necessário precisão no passe, fazendo a bola chegar nas mãos do companheiro. A bola, de formato oval, tem entre 58 e 62 cm de comprimento por entre 28 e 30 cm de largura, inflada entre 65,71 e 68,75 kPa e pesa entre 410 e 460 gramas. O treino se desenvolve assim, calmamente, até Martin anunciar a hora de jogar.
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O número 3 apontado por Handoff tratava-se de Jurandi Santos de Almeida Júnior. “Juranda” tem 20 anos e acabou de prestar vestibular para Educação Física na UFBA. Alto e forte, barbicha quase imperceptível, Jurandi é um dos mais antigos do time. Mal viu a primeira reportagem veiculada pelo Bahia Esporte, se interessou em ir treinar. “Eu conheci (o rugby) através da ESPN. Eu vi um jogo e gostei pra caramba, apesar de não entender nada. Ver a galera jogando com a mão e com o pé foi uma coisa absurda. Depois de um mês, passou uma reportagem na TV Bahia. A reportagem passou num sábado, na segunda eu já fui treinar”. Apaixonado pelo esporte, a relação já dura um ano e meio. E, em dezembro de 2006, o rugby proporcionou-lhe uma grande experiência: jogar um amistoso pela Seleção Brasileira Juvenil de Rugby. “Primeiro, eu joguei em Ilhabela a Copa São Paulo, onde aconteceu a seletiva da Seleção Juvenil. Daí, o técnico da Seleção chamou a mim e outro baiano, Jô, lá de Morro de São Paulo. Depois fomos treinar lá em São José dos Campos, onde teve outra seletiva. Chegando lá, treinamos bem, ficamos uma semana e depois fomos para Assunção jogar um amistoso contra a Seleção Juvenil do Paraguai”. Considerando o pouco tempo de prática pessoal do esporte(no período, menos de 1 ano) e o perído curto de treinamento em São José dos Campos (o time paraguaio já treinava junto há anos e o brasileiro treinou uma semana), só o fato de ter sido convocado para a Seleção Brasileira Juvenil já foi um acontecimento fantástico. Eles jogaram duro, com raça, tentaram até o último minuto, mas não venceram os paraguaios. Entretanto, o sorriso de Jurandi, ao falar da viagem ao Paraguai, não deixa dúvidas das boas lembranças de então. Perguntado sobre as contusões mais graves, Jurandi diz que nem é bom falar muito em contusões. Dá um sorrisinho, talvez acredite que falar em contusões pode gerar uma má impressão sobre o esporte nos futuros leitores da reportagem. Relaxa, Jurandi. Quem está na chuva é pra se molhar. Ele conta de uma luxação no ombro e uma fratura no maxilar. Essa última ocorrência o fez passar por uma cirurgia. Fazer o quê, são ossos do ofício, ainda que quebrados.
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Além do próprio Handoff, outro dos caras trazidos por Jurandi para a praia “do esgoto” foi Ramalho Nogueira Silva, o Shaka. Mas ele nem sempre foi Shaka. “Meu apelido era Zulu. Aí, quando eu encontrei com Zé, ele falou: “Zulu é muito comum. Você vai ser Shaka Zulu, o rei da etnia zulu.”” Infelizmente, eu não tive a mesma sorte de Shaka. Recebi um apelido muito menos nobre: Costelinha. Não tive a oportunidade de perguntar ao criador (nem sei quem foi, quando vi já me chamavam assim) do apelido a inspiração para tal, mas creio ter ele me considerado um clone do cachorro pequeno e cinza do Doug (pra quem não lembra do desenho animado Doug, azar). Negro e alto, Shaka é robusto, corpulento. O apelido de Shaka caiu como uma luva para o antes comum Zulu. Passa a idéia de majestade, daqueles reis imensos de fala grossa e pausada. Shaka tem 23 anos, trabalha como representante comercial vendendo produtos de beleza, esmaltes, shampoos, cremes, etc. Cursava Turismo na Faculdade da Cidade, mas trancou o curso há um ano e meio. Praticante de rugby desde abril de 2006, recorda-se dos tempos difíceis, quando treinavam na areia com cocos. A necessidade de um gramado surgiu quando eles, depois de disputarem o primeiro torneio, perceberam a dificuldade de adaptação que tiveram para jogar. Como estavam acostumados ao treinamento na areia, muitos jogadores do time tiveram problemas para jogar no campo. “Quando voltamos de lá (do primeiro torneio), achamos que era necessário encontrar um gramado. Encontramos um no CMS (Colégio Militar de Salvador), outro no campus da UFBA. Treinamos lá, treinamos também no campo do 19 BC (Batalhão de Caçadores do Exército) no Cabula e na casa de um colega nosso, e agora estamos aqui na Paralela”. Perguntado sobre o diferencial do rugby em relação a outras práticas esportivas, Shaka reitera a questão da amizade fora dos campos e diz parecerem existir “não oitenta times no Brasil, mas uma grande família”. Além disso, ele aponta o rugby como um esporte capaz de agregar pessoas as mais variadas possíveis. “Não existe outro esporte capaz de ter pessoas tão diferentes. Você pode ser gordo, magro, alto, baixo. Tem espaço pra todo biotipo, pra todo tipo de pessoa, pessoas hiperativas, outras de raciocínio lógico, tem espaço pra todo mundo”. Resumindo, o rugby comporta desde um mirrado Costelinha até um grande Shaka Zulu.
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Na hora de escolher os times, são separados três jogadores. Cada um deles escolhe um jogador de cada vez até estarem formados times com sete pessoas. Eu sempre fui, na minha carreira futebolística de colégio, um dos últimos a ser escolhido. Eram raras as vezes nas quais, por amizade de quem escolhia e não por méritos próprios, eu não ficava entre os últimos. Pelo menos agora eu tinha nobres motivos para ser deixado por último: nunca havia jogado rugby. Naturalmente, os times foram sendo formados e ficaram por último os dois novatos do dia. Jonca ( pronuncia-se Johnca) aponta pra mim e diz: “Usted”. O motivo: eu pelo menos estava de chuteira, enquanto o outro “aspira” jogava de pé no chão, absolutamente e corajosamente (ao meu ver) descalço. Handoff está em outro time. Observo alguns valentes colocarem protetores bucais. Como uma moça, viro pra Handoff e digo: “Velho, os caras estão com protetor bucal. Que porra é essa?” Ele responde com naturalidade (aliás, Handoff pouco se preocupava em ficar me acessorando durante o treino, agia como se já nos conhecéssemos há muito e isso era bom, pois havia naturalidade no seu comportamento): “Besteira. Eu também estou sem”. E vai para o campo jogar. O meu time não sairia jogando de início. Esperaria o fim da primeira partida. Enquanto isso, Jonca, o experiente chileno, montava a nossa estratégia de jogo, nos dizendo aquilo que faríamos em campo. “Temos que facer la bola llegar a ellos dos, usar la velocidad”. O comando era claro: os dois mais rápidos do time jogariam pelas pontas e nós deveríamos fazer a bola chegar até eles para que, usando a velocidade, eles marcassem os ensaios. Um ensaio (ou try) é marcado quando um jogador consegue encostar a bola no chão da área localizada depois dos postes da equipe adversária. Como não tínhamos postes disponíveis nem linhas demarcadoras, o campo era delimitado por mochilas. Para validar o try, o jogador deve cravar a bola no chão, estando a sua mão, a bola e o chão em contato simultaneamente. A primeira partida acaba. Nos dirigimos ao campo. No caminho, passo por Handoff e pergunto: “E aí, faço o quê?” Ele diz: “Vá lá, velho. Pegue alguém e derrube”. É claro que eu, com minha técnica apurada e físico desenvolvido, conseguiria derrubar alguém.
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Derrubar o jogador que está portando a bola é, na nomenclatura do rugby, realizar um tackle. Essa é a defesa básica do jogo. Mas, apesar da (falsa) idéia de que vale tudo para derrubar o adversário, existem regras. É proibido tacklear o oponente segurando-o na altura do pescoço ou da cabeça, bem como tentar desestabilizar o adversário só na altura do tornozelo com a mão ou o pé. Agressões como chutes ou socos também são punidas. Derrubar um jogador que não detenha a bola no momento também é uma falta grave. Para considerar um jogador tackleado, este deve ter pelo menos um dos joelhos em contato com o chão. Após sofrer o tackle, o jogador não pode passar a bola ou segurá-la, tendo de deixá-la para outro jogador (da sua equipe ou da adversária) continuar com o jogo.
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Juan Carlos Silva Alvarez nasceu na Itália, mas mudou-se com apenas 3 anos para Santiago, capital do Chile. Conhecido como Jonca, já pratica rugby desde os 8 anos de idade, quando estudava em um colégio inglês. “En los colégios ingleses, es una asignatura a mais. (O rugby) Es como matemática, como español”. Como ele tem 44 anos, já são 36 anos de prática do esporte. Casado com uma baiana, Jonca vive em Salvador há 3 anos. “Soy licenciado em Matematica e Fisica, mas acá en Salvador me dedico a comércio”. Jonca possui duas lojas em Salvador, uma no Shopping Center Lapa e outra no supermercado Atakarejo. O nome da empresa é Clorofila, “una franquia de perfumeria; algo dificil de entender para un rugbista”, ele brinca. Enquanto conversamos, Jonca amarra as chuteiras, preparando-se para treinar. Magro, de estatura mediana e calvo, ele está presente nos treinos desde o período do Jardim dos Namorados descrito por Handoff. Como possui muitos anos de experiência como jogador, é sempre uma voz importante a ser ouvida. Fazendo uma comparação entre o rugby no Chile e no Brasil, Jonca esclarece que, mesmo fora do universo dos colégios ingleses, nos quais se pratica o rugby como uma disciplina do currículo, há uma grande diferença na questão da popularidade. “En Chile, se está faciendo hace unos oito ou diez anos projetos com colégios públicos. E todas as universidades têm su time de rugby”, afirma ele. Jonca ainda diz ser o rugby chileno praticado em todo o país, ao contrário do ocorrido no Brasil. Depois de terminada a entrevista, estava eu a falar com Handoff quando Jonca se aproxima e parece ter algo importante a dizer. “Através del mundo, siempre se tem una filosofia quando se pratica esse esporte. Primeiro, que es una família. E segundo, como muchos piensam, es un jogo de brutos, pero jogado por caballeros”. Handoff sorri e diz: “Ele sempre fala isso”.
*Nota importante: Na fala de Jonca, resolvi priorizar a oralidade, ou seja, fiz o máximo para tentar escrever da maneira que ele falava. Logo, é proposital a mistura de algumas palavras com grafia em espanhol e outras em português.
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A partida inicia-se com cada um dos times no seu lado do campo. Então, é dado um pontapé no centro do campo com a intenção de fazer a bola andar no mínimo 10 metros, já no campo do oponente. O mais complicado para quem joga uma partida de rugby pela primeira vez é a sensação de desnorteamento, de desorientação total. Em primeiro lugar, como é um esporte de muito contato, perde-se às vezes a noção de quem é do seu time e quem é do time adversário. Não havia, como forma de solucionar isso, o time de camisa contra o sem-camisa nem nada do tipo. Em segundo lugar, a preocupação em não passar a bola para a frente acaba te paralisando. Isso aconteceu comigo na única vez que peguei a bola. Eu estava próximo a um maul (acontece quando um jogador é segurado por um oponente sem sem derrubado e sem deixar a bola cair no chão e outros jogadores entram em contato com esses dois primeiros, seja para manter a posse da bola seja para roubá-la) quando todos os jogadores foram ao chão e formaram um ruck (a bola passa a ser disputada no chão, apenas com os pés, até que sobre “limpa” para alguém colocá-la em jogo novamente. Jonca havia sido segurado por um jogador do outro time, mas não havia caído. Jonca brigava e grunhia, segurando a bola entre os braços enquanto o oponente tentava arrancá-la com puxões. Logo vieram jogadores dos dois times e passaram a disputar também a bola. Achei melhor ficar na cocó e esperar. O bando veio ao chão e a disputa continuou. Eu, na espinha mole, vi de repente a bola saindo do meio daquele “montinho”. Era a minha chance de tentar fazer algo de útil, enfim, depois de correr como um peru tonto para todos os lados sem ter pegado na bola desde o início da partida. Abaixei-me, peguei a bola e comecei a correr para a frente. De repente, já havia um marcador à minha frente. Olhei para os lados procurando alguém para passar a bola, com a maldita regra pulsando na minha cabeça: passe a bola para a trás ou para os lados. Fiquei sem reação, enquanto o marcador já tentava tirar o “doce da criança” e alguns outros se aproximavam. Agora a voz interior dizia: “Perdeu, playboy”. Nem foi preciso grande esforço para arrancarem-na das minhas mãos. Tudo muito rápido. Eu poderia mentir e dizer que lutei heroicamente, com unhas e dentes, até a morte, para preservar a posse do objeto disputado. Na verdade, em cerca de cinco segundos, eu tive a bola em minhas mãos e a perdi. Perdemos a partida. Jonca se aproxima e diz: “Quando pega la bola, passa rapido para el lado. Se te pegan así de frente, van matar a usted”. Depois, ele ainda diz que me posicionei bem durante a partida. Quase pergunto: “Que posicionamento?” Suspeito ele ter dito aquilo para me agradar, um pequeno elogio ao novato para motivá-lo. Finjo aceitar a veracidade do seu comentário, para agradar tanto a ele quanto a mim. Afinal de contas, talvez eu não tivesse sido um fracasso total. Sim, o meu posicionamento foi bom. Eu até diria ter sido eu quem melhor se posicionou em campo. Bastaria repetir o procedimento nas próximas partidas e eu seria o destaque do dia. O meu posicionamento, descobri depois, consistia em permanecer o mais longe possível da bola e dos arranca-rabos, adotando uma atitude diplomática nos enfrentamentos.
Sento-me no chão para descansar um pouco, afinal uma partida de rugby para alguém de vida sedentária (do computador para a tv e desta para a cama nos momentos do dia não ligados à faculdade) é um exercício cansativo. O homem que estava ao lado de Handoff quando eu cheguei pra treinar vibra com algum lance. “Vai, corre, corre, ninguém pega mais, caralho, esse cara corre muito”. Acompanho a direção do seu olhar e vejo alguém disparando com a bola sob controle, enquanto várias pessoas tentam pará-lo com trancos no corpo ou segurando-o. Ele avança vários metros, consegue desvencilhar-se das mãos que tentam segurá-lo, cruza a linha de fundo adversária e arremessa a bola ao chão com vontade, para desespero de quem assiste o jogo. “Ô velho, isso aqui não é futebol americano, não”, alguém grita. “Depois desse esforço todo, perdeu o ponto. Tem que cravar a bola, não pode jogar simplesmente no chão”, um outro explica. Handoff e um outro estão sentados próximos a mim. Eles dizem: “Rapaz, quando você pegar a bola, ou corre ou passa logo, senão você morre”. Eles estavam obviamente se referindo à minha indecisão e falta de atitude na última partida. “O rugby é assim mesmo. Durante o jogo é “sangue no olho”, mas depois dos jogos a gente tem uma coisa chamada de terceiro tempo. Os dois times se reúnem pra comemorar, festejar, cumer água. Acaba o jogo, todo mundo é amigo. Mas durante...é pra matar mesmo”. Um outro lance faz alguém comentar: “Ó pra lá, rapaz. O maluco ficou com a camisa do outro na mão. Foi tentar segurar e rasgou a camisa do cara”. Handoff narra um episódio com ares de anedota. “Rapaz, sabe quem é Alex, do CMS? Aquele bicho corre muito. Outro dia, lá no treino do Dendezeiro, ele vinha correndo com a bola, aí veio um e segurou ele pela camisa, vraaaaa, rasgou toda, ele continuou a correr, veio outro maluco e segurou ele pela bermuda, vraaaaa, rasgou assim atrás e ele ainda com a bola. Aí, quando veio o terceiro, ele chegou e fez: “Não vou ficar pelado, não”. E se jogou no chão”. A história arranca risadas dos que ouvem.
É chegada a hora de jogar mais uma. Entro em campo e me posiciono bem atrás, no meio. De repente, percebo a existência de oito jogadores no meu time. Aproveito para anunciar que somos oito e que, portanto, vou sair para deixar cada time com o mesmo número de membros, no caso sete. Saio sorrateiramente e fico observando esse jogo de fora, sentado e abraçando as minhas pernas à minha frente. O jogo acaba, e também o treino. Alguns, meio lesionados, fazem uso de Gelol. Pelo menos eu não tinha tomado nenhuma pancada, pensei. Então, algum gaiato me olhou e disse: “Peraí, hoje tem novato”. Percebi na hora a existência de um tipo de “trote” para os iniciantes. E logo eu estava ouvindo o mantra “uh, vai morrê-ê”.
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Derrama, Senhor, sobre ele o seu amor. Uma série de mãos desceu sobre as minhas costas, cobrindo-me de bençãos. Nesse momento só consegui pensar: “Observação participante é o caralho”. Quando você toma muitas pancadas ao mesmo tempo, uma anula o efeito da outra. Pelo menos assim eu senti, como se o número de pontos doloridos nas minhas costas fosse menor do que a quantidade de rostos sorridentes, ávidos para desferirem o ataque. A ida foi cumprida. Olhei para trás. O Portuga gritou: “Faz como eu te disse”. Dessa vez, demorei bem menos. Depois de metade da tarefa cumprida, é mais fácil completá-la. Voltei. Mais tapas, mais gritos de satisfação. No final das contas, acabou doendo muito menos que o esperado por mim. O mais estranho da cerimônia, no entanto, foi o final. Todos vieram na minha direção, com efusivos tapinhas nas costas (agora sim, eram tapinhas), abraços, rostos sorridentes e uma série de falas como “Bem vindo”, “Bem vindo ao time”, “No próximo treino, você já vai bater”, “É isso aí, velho” e outras tão calorosas e amigáveis quanto as citadas. Aí eu comecei a entender de verdade um pouco da filosofia do rugby, apesar de não ser praticante. Depois das explicações de Handoff e de Jonca ter dito que eles, do rugby, eram como uma grande família, ajudando-se tanto dentro quanto fora de campo, ali estava a demonstração mais clara do sentido de união existente entre eles. Eu, amigo de uma amiga de Handoff, estava ali pela primeira vez e era bem recebido por todos. Eles podiam simplesmente encerrar o batismo e dar o treino como acabado, mas muita gente veio nos desejar (a mim e ao outro) as boas-vindas. Muita gente mesmo. Eu queria ter visto a minha cara naquele momento. Provavelmente era um misto de sorriso amarelo com uma expressão de “nem doeu” por causa dos tapas. A isso somava-se a surpresa, a incredulidade. Realmente, pra aquelas pessoas, o rugby é muito mais do que simplesmente treinar e participar de torneios. Handoff me convida a “conhecer o rugby de verdade”, ou seja, participar do Rugbeer, festa que aconteceria dentro de poucos dias no World Bar. Ele garante guardar a sua chuteira para eu tomar cerveja diretamente nela, como se isso fosse uma segunda parte da iniciação do novato. Infelizmente, compromissos maiores me impediram de comparecer ao evento. LSD é para os fracos, como Tom Wolfe, pensei. Queria ver era ele escrevendo sob efeito de um porre de cerveja de chuteira.
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A brisa vinda do mar era agradável. O cenário era a Praia da Paciência, no Rio Vermelho. Passadas quatro noites da minha experiência no treino da Paralela, agora era o momento de fazer uma observação um pouquinho menos participante. No lugar da grama mal cuidada da Paralela, a areia já fria da praia numa típica noite soteropolitana. Ali, treinavam adolescentes de ambos os sexos. Dessa vez, não há necessidade de apresentações prévias; mal chego e já sou “reconhecido” pelo técnico do time e presidente da Associação Bahiana de Rugby, o português* José Pestana Alpuim: “Você é o amigo de Handoff?”. Era fácil para ele, obviamente, reconhecer um estranho no ninho, já que ele está acostumado aos rostos já conhecidos de quem treina às terças e quintas na Paciência. Perguntei se poderíamos conversar naquele momento ou depois do treino, caso não houvesse a possibilidade dele me conceder a entrevista antes do mesmo. “Melhor agora, porque depois que acabarmos, vou direto pra casa”.
*A rigor, ele é luso-brasileiro. Resolvi, contudo, priorizar a sua nacionalidade original.
Zé, como é chamado por todos, tem 34 anos e vivencia o universo do rugby desde pequeno. Ainda com oito anos de idade, ele e todos os seus primos (ele frisa não haverem primas na família, apenas primos) já praticavam o esporte. Inclusive um de seus tios já foi considerado, há cerca de quinze anos, o melhor jogador de rugby de Portugal. Antes de morar em Salvador, viveu dois anos e três meses em Ilhéus. Sobre o início do esporte em Salvador, ele diz: “Na verdade, não fui eu que corri atrás. Eu andava procurando pelo Google se via mais algum gringo como eu interessado, eu já levava minha bola pra praia pra ver se alguém se interessava. Mas aí um dia me ligaram, os iniciadores de uma comunidade no Orkut, na verdade o Big (Big Pedro Almeida é o dono da comunidade do Orkut “Rugby na Bahia”). E em contato com um francês de Natal, com quem eu já tinha encontrado, fomos a um barzinho, sentamos e marcamos o primeiro treino”. Daí em diante, começaram a treinar sempre às segundas, quartas, quintas e domingos. E a coisa começou a crescer de maneira surpreendente. De acordo com Zé, os quatro anos e meio no Brasil o ensinaram uma coisa: aqui, “as coisas podem demorar de acontecer, mas quando acontecem... é numa velocidade, cara”. Segundo ele, isso tudo é muito empolgante e algo com o qual o europeu não está habituado. Durante todo o ano de 2006, Zé treinou a equipe do Bahia Rugby Club. A partir do final de 2006, ele passou a se dedicar mais aos projetos sociais associados ao rugby na Bahia (além do time do Rio Vermelho, há aulas também em colégios públicos). Hoje é fato a importância que os patrocinadores dão ao componente social. Para um esporte como o rugby, pouco conhecido no Brasil, o fato de estar ligado a projetos sociais pode auxiliar, por exemplo, para se conseguir patrocínio. O surpreendente, diz Zé, foi a quantidade de bons atletas encontrados nesses projetos sociais. “A velocidade e a capacidade física deles é impressionante”. Perguntado sobre a questão da pouca popularidade do rugby em Salvador, Zé já aponta uma mudança nesse cenário, graças à série de exibições realizadas no estádio da Fonte Nova. Responsáveis por fazerem as prévias de cinco jogos, os jogadores de rugby tiveram a oportunidade de serem assistidos por uma grande quantidade de pessoas. O ponto alto dessas apresentações se deu quando eles jogaram antes e no intervalo de um Ba-Vi. “Em qualquer bairro, qualquer colégio que a gente vá hoje, eu mostro a bola e pergunto “Alguém já viu essa bola?”. Sempre tem um menino que diz: “Eu vi, na Fonte Nova.””
Enquanto converso com Zé, vão chegando aos poucos os atletas. Eles passam por nós e acenam para o português. Alguns, mais entusiasmados, fazem menção de ir falar com o técnico. Ele acena com a mão, pedindo que não interrompam a entrevista. Outros, mais exaltados, chegam esbaforidos pra dizer algo:
- Licença aqui, é rapidinho
- Não – diz Zé.
- Não, é rápido. Pra falar sobre...
- Não – dessa vez acrescido de um gesto manual.
Mais tarde, um outro garoto chega até nós e me pergunta:
- Vai treinar também?
- Não, não. Só assistir.
- Vai correr, ou então não cresce – diz Zé ao garoto.
- Crescer pra quê? – responde o menino.
- Só vai poder entrar para o time se crescer, não tem outro jeito – encerra Alpuim.
Zé Alpuim aponta, uns dez metros afastados de nós, “um dos responsáveis pelo sucesso do projeto” na Praia da Paciência e aconselha-me a conversar com ele. O nome do homem em questão é Johnson. Apesar do nome, este não é estrangeiro. O engraçado (e fascinante) disso tudo, pensei, é eu estar numa praia soteropolitana à noite para assistir garotos e garotas do Alto de Ondina jogando rugby. Além disso, eu havia falado com um Zé gringo e agora me dirigia para conversar com um Johnson conterrâneo meu.
Johnson Gomes dos Santos, 41 anos, participa do projeto Segundo Tempo, que já tem 4 anos de existência e conta com cerca de 450 alunos no Alto de Ondina. No projeto em questão, os alunos treinam esportes, como o futebol e, há cerca de um ano, o rugby. Johnson conheceu o rugby naquela mesma praia quando, numa noite, tinha levado alguns garotos pra darem uma corrida na área, se exercitarem. Chegando ao local, encontrou Zé Alpuim a treinar com um pequeno grupo um esporte desconhecido até então para ele. “Depois desse dia, eu peguei a bola e ele (Zé) me ensinou como é que fazia; não pode jogar pra frente, só pra trás e pro lado e tal, derrubar da cintura pra baixo. Daí ele fez uma rodinha com os meninos, eu fiz outra e comecei a trabalhar. Depois, a gente ficou amigo e aí tocamos o barco pra frente. Hoje, lá no Alto de Ondina, onde a gente treina com o projeto Segundo Tempo, já dividimos a quadra: metade joga rugby e metade joga futebol”. Johnson, que já praticou diversos tipos de esportes, como futebol, basquete, vôlei, natação, handebol e atletismo, hoje joga pelos Orixás, junto com o seu filho Johnson Júnior, de 16 anos. Ele narra um episódio recente no qual o seu filho foi agredido durante uma partida em Recife. “Meu filho fez uma jogadinha bonita contra a Seleção de Natal e logo depois ele foi pisado no chão, na maldade, por um maluco. Faltando uns quatro ou três minutos pra acabar o jogo, ele deu um murro no meu filho e aí o jogo acabou. A gente só fez tirar o time de campo. O juiz queria expulsar o cara, mas o jogo não ia ser a mesma coisa. Ficamos em segundo lugar e deixamos eles lá com o troféu”. O episódio acabou criando um clima ruim e o time campeão acabou nem ficando para o terceiro tempo, momento de celebração e de festa entre os jogadores. Além de Johnson e de seu filho, outros jogadores da Paciência membros dos Orixás são Francarlos, Diego e Bieco. Como eles sempre treinam Rugby Sevens na praia, o grande diferencial deles é a velocidade. “Quando chega (a bola) na gente, a gente define o jogo”, diz Johnson.
O treino começa e eu me afasto até a base de uma barraca de praia, sentando-me ao lado de uma mulher adulta e de um pequeno com quatro anos, no máximo. Eu pergunto se ele não vai treinar também. O guri não me responde; prefere dar atenção ao celular em suas mãos. Comparando os treinos, imagino ser este mais cansativo, já que se realiza em areia fofa. Além disso, Zé abusa do, elogiado por ele mesmo, vigor físico dos atletas. Eles correm o tempo todo, levantando areia por onde passam. Enquanto o português se ocupa do time masculino, Johson cuida das meninas. O treino delas é tão pesado quanto o dos rapazes. Elas derrubam umas às outras, puxam-se, caem no chão, se embolam, uma já cortou o pé em algum caco de vidro escondido sob a areia, a outra queixa-se da areia no cabelo e pergunta se a Seda está patrocinando o treino, por acaso. Johnson monta um quadrado na areia, colocando um cone em cada vértice, e coloca as garotas no meio daquela arena, quase um Coliseu romano. Duas garotas seguram a bola, passando-a uma para a outra, e outras duas tentam derrubar as primeiras. O objetivo é derrubar a que tem a bola em mãos.
- Ópaí, Johnson, vale puxar pelo pescoço, é?
Johnson nem liga pras reclamações da queixosa. Deixa a atividade continuar.
- Tá bom, então vale puxar pelo pescoço, né? Beleza, cê vai ver, piriguete – promete em tom de vingança, mas rindo, a injustiçada.
A mulher sentada ao meu lado diz, enquanto observa o treino feminino: “Jogo de maluco”. Dou risada da sua observação e ela me acompanha, dizendo em seguida: “Não é, não?” Dona Carminha aponta o seu filho Francarlos no meio de tantos (mais cedo, ele foi o mais rápido entre os jogadores numa “brincadeirinha” na qual o atleta fazia um trajeto entre cones, saltava bolas enterradas na areia e corria até mesmo de costas) e narra a ida dele, desmaiado, ao Hospital Geral de Salvador em decorrência de um choque durante uma partida de rugby. Depois disso, ela prefere não assistir às partidas disputadas quando o filho está em campo. Ao nosso lado, um menino de seis ou sete anos brinca sozinho com uma bola de rugby, jogando-a para cima e depois apanhando-a na queda.
Zé Alpuim coloca os caras pra correr de verdade. E com ele não tem muita conversa, não. Ele treina o fundamento do passe e do tackle. Assim como no treino da Paralela do qual eu participei, três avançam lado a lado passando a bola entre eles, enquanto dois marcadores tentam derrubar quem estiver com a ovalada. Um rapaz tackleia outro. Depois, de sacanagem, pega a bola e chuta em direção ao mar para o outro ter de ir buscar. O tackleado reclama com Zé, chamando o outro de escroto. “Tá, ele é um escroto, tudo bem. Mas então aprende a lição e não perde mais a bola”, diz o técnico. Alpuim não é um sacana, nem diz essas coisas para humilhar ou ofender o atleta. É apenas o seu estilo de treinamento. Minhas impressões estavam corretas. O próprio Handoff diz ser preciso um tempo e um certo “controle emocional” pra se acostumar com o jeito do português. “Zé é um excelente treinador físico. Treinando com ele, você vira um super-homem. Com ele não tem brincadeira, não. Parece um pouco treinamento militar: reaja, levanta, pega a bola”. Entretanto, apesar do estilo de treinamento puxado, Zé aparenta ser tranqüilo. Enquanto conversávamos, ele sorriu diversas vezes e chegou a comentar despretensiosamente, depois de criticar o pouco aproveitamento do vigor físico dos brasileiros e apontar poucos jogadores de futebol brasileiros que já chegam “prontos” à Europa (entre eles, citou Kaká), sobre o Kaká ter tirado o lugar, no time do Milan, do seu jogador preferido, o Rui Costa.
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Reza a lenda que, na mesma mala onde trouxe uma bola de futebol, o inglês Charles Miller teria trazido uma bola de rugby para o Brasil. Verdade seja dita, o rugby é tão antigo nessas terras quanto o futebol. Por quê, então, o rugby não tem tanta popularidade no nosso país? Com a palavra, quem pode opinar nisso melhor do que eu.
Shaka aponta a questão da colonização, argumentando que, onde ocorreu uma presença inglesa e francesa maior, o rugby se desenvolveu mais. Além disso, ele cita o “mito da violência” criado ao redor do rugby como um entrave para o desenvolvimento do esporte. Jonca argumenta ser o futebol mais fácil de se jogar, com menos regras. Um “baba”, sem dúvidas, pode ser jogado por todos. Uma partida de rugby exige maior disciplina tática e conhecimento das normas do jogo. Handoff fala da teoria de Zé, que pretende, aportuguesando os termos ingleses do esporte, tornar este mais próximo da realidade brasileira. As possibilidades de explicação são diversas. Talvez isso possa ser inclusive pesquisa de caráter sociológico: talvez nós, brasileiros, no fundo, não estejamos tão acostumados a um nível de competição tão extremo como o exigido pelo esporte. Para jogar rugby, você precisa se doar ao máximo. A resposta para o enigma pode ser qualquer uma dessas alternativas apontadas acima, ou um pouco de cada uma, ou nada disso. Afinal de contas, não dá pra querer explicar tudo por um viés “sociológico”. Se não, como explicar um esporte de pouca tradição no Brasil, que não passa na tevê aberta e não é conhecido pela maioria da população, sendo praticado em Salvador? Esses garotos e garotas rugbistas são fruto da vontade de algumas pessoas, do esforço de algumas outras e do boca-a-boca (a melhor propaganda existente) acrescidos da visibilidade ganha com os jogos na Fonte Nova e da exibição de algumas reportagens na tevê.
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O treino na Paciência chega ao fim. Todos se reúnem, chamados por Johnson. Ele fala das convocações a serem entregues nos colégios de alguns daqueles garotos e garotas. Tratam-se de uma espécie de documento para os que vão viajar a Niterói para a disputa de um torneio. A maioria estuda no Colégio Estadual Evaristo da Veiga. Johnson Júnior pede a Zé pra ele apitar uma partida antes de irem embora. O técnico faz um “não” com a cabeça. Alguém brinca: “Zé vai pra casa namorar”. A procura por água é intensa; poucos trouxeram garrafas e muitos têm sede. Johnson Júnior pergunta se alguém deixou um pouco de água. Ninguém se manifesta. Ele brinca: “Essa é a família do rugby”. Johnson fala um pouco mais sobre os preparativos da viagem à Niterói. Zé não diz nada nesse momento. Depois de estar tudo acertado, todos começam a se dirigir às escadas para subir até o passeio. Eu recolho minhas sandálias, bato uma na outra pra tirar o excesso de areia e começo a andar ao lado de Johnson. Ele comenta: “ Pois é, pra você ver como são as coisas. Quando é que esses meninos iam pensar em viajar de avião pra Niterói pra disputar torneio de rugby?” Eu sorrio e penso: “Quando é que eu imaginaria escrever um dia uma reportagem sobre rugby?”
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